quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Encomium Moriae - Elogio da Loucura (cont.)

Continuação do post anterior.

- Sobre os sábios e os tolos.

De tudo isso, infiro que os verdadeiros felizardos são os que mais se aproximam da índole e da estupidez dos brutos, sem empreenderem  nada que esteja acima das forças humanas.

Notai, de passagem, o privilégio que  têm os bobos de poder falar com toda a sinceridade e franqueza. Haverá coisa mais  louvável do que a verdade?

Mas, os sábios, segundo o mesmo Eurípedes, têm duas línguas, uma para dizer o que pensam e a  outra para falar conforme às circunstâncias: quando o querem, têm talento para fazer o  preto aparecer como branco e o branco como preto, soprando com a mesma boca o calor e o  frio (66) e exprimindo com palavras  exatamente o contrário do que sentem no peito.

Só se costuma defender a verdade quando não se é atingido por ela; ora, só aos loucos os deuses  concederam o privilégio de censurar e moralizar sem ofender a ninguém.

Os cômicos, os músicos, os oradores, os poetas — eis aí, eis os melhores amigos do amor próprio! Quanto mais ignorantes, tanto mais  perfeitos se julgam em sua arte, e, assim prevenidos em benefício próprio, aproveitam todas  as ocasiões para celebrar os próprios louvores. 

Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade.

Porque, se há verdades que, tendo sido bem demonstradas, não deixam lugar às dúvidas, quantas não serão — pergunto — as que  perturbam o tranquilidade e os prazeres da vida? Os homens, enfim, querem ser enganados  e estão sempre prontos a deixar o verdadeiro para correr atrás do falso. 

Merecem ser incluídos nessa categoria os habitantes da caverna de Platão (77). Ao  verem, os tolos, as sombras e as aparências de diversas coisas, admiram-nas e nada mais  procuram, dando-se por satisfeitos. Já os filósofos, por estarem fora da caverna, não só  observam os mesmos objetos como lhes investigam os mistérios. Não terão uns e outros o  mesmo prazer?

Não haveria, pois, diferença alguma entre os sábios e os loucos, se não fossem mais  felizes estes últimos. 

Os sábios são em número tão escasso que nem vale a pena falar deles, e eu desejaria  saber mesmo se é possível descobrir algum. No curso de tantos séculos, a Grécia se  vangloria de ter produzido apenas sete sábios. É na verdade maravilhoso! O gênero humano  deve mesmo muito a essa felicidade da Grécia! Foram mesmo sete? Pois pedi a Deus que  não vos venha o desejo de anatomizá-los cuidadosamente, porque, de contrário (juro-vos  por Hércules, arrebento-vos a cabeça), não encontraríeis, decerto, nem a metade de um  filósofo e talvez nem mesmo um terço.

- Sobre os doutores.

Conheço um homem de sessenta anos que conhece perfeitamente o grego, o
latim, as matemáticas, a filosofia, a medicina. Pois seríeis capazes de adivinhar com que se  preocupa esse sábio universal, há uns vinte anos? Tendo abandonado todos os estudos,  dedica-se exclusivamente à gramática, pondo o cérebro num tormento contínuo. Só ama a  vida para ter tempo de dirimir algumas dificuldades dessa importante arte, e morreria  satisfeito se descobrisse um método seguro de distinguir bem as oito partes do discurso,  coisa que, a seu ver, não conseguiram com perfeição nem os gregos nem os latinos. Bem  vedes que é uma questão de suma importância para o gênero humano. Com efeito, não é  mesmo uma miséria estar sempre correndo o risco de tomar uma conjunção por advérbio?  Um tal equívoco mereceria uma guerra cruenta.

Outra espécie de pessoas mais ou menos da mesma laia é constituída pelos que
ambicionam uma fama imortal publicando livros. Todos esses escritores têm parentesco  comigo, sobretudo os que só publicam coisas insípidas.

Compreendem-na ainda melhor os plagiários* que com suas facilidades se apropriam  das obras alheias, gozando da glória que aqueles dos quais eles a roubaram conseguiram  com imensa dificuldade. Não ignoram esses impudentes que, mais dia menos dia, será  descoberto o furto, mas, em compensação, esperam aproveitar-se dele por algum tempo. 

* Plagiários eram os que roubavam as crianças e os escravos. A palavra tem, hoje, um sentido análogo, referindo-se aos que roubam idéias alheias.

Pretendem os advogados levar a palma sobre todos os eruditos e fazem um grande  conceito da sua arte. Ora, para vos ser franca, a sua profissão é, em última análise, um  verdadeiro trabalho de Sísifo (84). Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não  chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de  comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de  todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime o laborioso engenho. E, como sempre  se acha mais belo o que é mais difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa  ciência.

(Fim do bloco II)

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