- Sobre os sábios e os tolos.
De tudo isso, infiro que os verdadeiros felizardos são os que mais se aproximam da índole e da estupidez dos brutos, sem empreenderem nada que esteja acima das forças humanas.
Notai, de passagem, o privilégio que têm os bobos de poder falar com toda a sinceridade e franqueza. Haverá coisa mais louvável do que a verdade?
Mas, os sábios, segundo o mesmo Eurípedes, têm duas línguas, uma para dizer o que pensam e a outra para falar conforme às circunstâncias: quando o querem, têm talento para fazer o preto aparecer como branco e o branco como preto, soprando com a mesma boca o calor e o frio (66) e exprimindo com palavras exatamente o contrário do que sentem no peito.
Só se costuma defender a verdade quando não se é atingido por ela; ora, só aos loucos os deuses concederam o privilégio de censurar e moralizar sem ofender a ninguém.
Os cômicos, os músicos, os oradores, os poetas — eis aí, eis os melhores amigos do amor próprio! Quanto mais ignorantes, tanto mais perfeitos se julgam em sua arte, e, assim prevenidos em benefício próprio, aproveitam todas as ocasiões para celebrar os próprios louvores.
Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade.
Porque, se há verdades que, tendo sido bem demonstradas, não deixam lugar às dúvidas, quantas não serão — pergunto — as que perturbam o tranquilidade e os prazeres da vida? Os homens, enfim, querem ser enganados e estão sempre prontos a deixar o verdadeiro para correr atrás do falso.
Merecem ser incluídos nessa categoria os habitantes da caverna de Platão (77). Ao verem, os tolos, as sombras e as aparências de diversas coisas, admiram-nas e nada mais procuram, dando-se por satisfeitos. Já os filósofos, por estarem fora da caverna, não só observam os mesmos objetos como lhes investigam os mistérios. Não terão uns e outros o mesmo prazer?
Não haveria, pois, diferença alguma entre os sábios e os loucos, se não fossem mais felizes estes últimos.
Os sábios são em número tão escasso que nem vale a pena falar deles, e eu desejaria saber mesmo se é possível descobrir algum. No curso de tantos séculos, a Grécia se vangloria de ter produzido apenas sete sábios. É na verdade maravilhoso! O gênero humano deve mesmo muito a essa felicidade da Grécia! Foram mesmo sete? Pois pedi a Deus que não vos venha o desejo de anatomizá-los cuidadosamente, porque, de contrário (juro-vos por Hércules, arrebento-vos a cabeça), não encontraríeis, decerto, nem a metade de um filósofo e talvez nem mesmo um terço.
- Sobre os doutores.
Conheço um homem de sessenta anos que conhece perfeitamente o grego, o
latim, as matemáticas, a filosofia, a medicina. Pois seríeis capazes de adivinhar com que se preocupa esse sábio universal, há uns vinte anos? Tendo abandonado todos os estudos, dedica-se exclusivamente à gramática, pondo o cérebro num tormento contínuo. Só ama a vida para ter tempo de dirimir algumas dificuldades dessa importante arte, e morreria satisfeito se descobrisse um método seguro de distinguir bem as oito partes do discurso, coisa que, a seu ver, não conseguiram com perfeição nem os gregos nem os latinos. Bem vedes que é uma questão de suma importância para o gênero humano. Com efeito, não é mesmo uma miséria estar sempre correndo o risco de tomar uma conjunção por advérbio? Um tal equívoco mereceria uma guerra cruenta.
Outra espécie de pessoas mais ou menos da mesma laia é constituída pelos que
ambicionam uma fama imortal publicando livros. Todos esses escritores têm parentesco comigo, sobretudo os que só publicam coisas insípidas.
Compreendem-na ainda melhor os plagiários* que com suas facilidades se apropriam das obras alheias, gozando da glória que aqueles dos quais eles a roubaram conseguiram com imensa dificuldade. Não ignoram esses impudentes que, mais dia menos dia, será descoberto o furto, mas, em compensação, esperam aproveitar-se dele por algum tempo.
* Plagiários eram os que roubavam as crianças e os escravos. A palavra tem, hoje, um sentido análogo, referindo-se aos que roubam idéias alheias.
Pretendem os advogados levar a palma sobre todos os eruditos e fazem um grande conceito da sua arte. Ora, para vos ser franca, a sua profissão é, em última análise, um verdadeiro trabalho de Sísifo (84). Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime o laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é mais difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência.
(Fim do bloco II)
Nenhum comentário:
Postar um comentário