Padre Libânio (1932 - 2014), fonte: aqui. |
Domingo passado (ontem), quando eu estava tentando* preparar uma aula de metodologia científica, por caminhos tortuosos, acabei chegando à revista Horizonte - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião (A1 no QUALIS de sua área - Filosofia, subcomissão Teologia, link aqui) e à notícia de falecimento do padre jesuíta João Batista Libânio. Junto à nota de falecimento havia o convite para ler o seu último artigo publicado na citada revista (dezembro/2013) e a leitura de um editorial de 2006 - “O problema do mal”.
Como esse problema é debatido a desde o início do pensamento filosófico e teológico e a solução apresentada pelo padre Libânio é, no mínimo, interessante, resolvi fazer essa postagem. Postagem longa, é verdade, e um tanto fora dos padrões normais de temperatura e pressão deste blog, o que também pode ser observada até por um leitor menos atento, mas de qualquer forma segue abaixo a nota de falecimento do padre Libânio e o texto (dele) sobre o problema do mal.
* uma das minhas resoluções de fim de ano - conferir aqui.
Obs: no momento desta postagem, o site http://www.jblibanio.com.br/ esta sem funcionar devido o grande número de acessos.
-------- Nota de falecimento
Vítima de um infarto, o padre jesuíta, João Batista Libânio, faleceu na manhã de 30 de janeiro, em Curitiba (PR). O sacerdote foi assessor da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) e colaborador no Instituto Nacional de Pastoral e em comissões episcopais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Padre Libânio, como era conhecido mundialmente, dedicou-se aos estudos teológicos, à ação pastoral e ao magistério durante anos. Foi autor de mais de 125 livros. Ele também era Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2 (Lattes aqui).
Na arquidiocese de Belo Horizonte (MG) contribuía com artigos e textos para o Jornal de Opinião e Notícias Digital, nos quais escrevia na coluna “O olhar do teólogo”. Padre Libânio dizia que “nada faz o ser humano ser tão feliz como colaborar no crescimento interior e espiritual das pessoas".
Fonte: http://www.cnbb.org.br - noticias.
Editorial
-------- O problema do mal
“Por que sofro? Esta é a rocha do ateísmo” (G. Büchner). A dura e terrível realidade concreta do mal foi brandida pela razão moderna, como argumento irrefutável da inexistência de Deus. Anunciou-se-lhe a morte. Mas não se soube o que fazer com o seu cadáver (F. Nietzsche). Sem Deus, o ser humano teve de carregar sozinho o peso de todos os males, sem outro sentido que o próprio mal.
O mal afeta-nos a todos. Ninguém escapa dessa realidade sob as mais diversas formas, desde o mal físico até aquele que nos atinge o mais recôndito do coração. “A experiência do mal está ligada à existência humana como a sombra à luz” (L.B. Geiger).
O mal ultrapassa as dimensões do problema. É um mistério (G. Marcel) irracional, escandaloso, inexplicável, injustificável. Às vezes, assume formas de “círculos infernais” de pobreza, violência, alienação racista e cultural, destruição da natureza pela poluição de vários tipos e, por fim, do círculo do absurdo à medida que, aparentemente, estamos fazendo do mundo um inferno (J. Moltmann). O médico Rieux do romance de A. Camus, La peste, diante da morte de criança inocente, rejeita a resposta do jesuíta Paneloux que lhe sugeria “amar o que não podemos compreender”. “Não, padre”, disse ele, “o que penso do amor é bem diferente. E me recusarei até a morte a amar essa criação em que as crianças são torturadas”.
O mal desafia as ciências humanas. Estas tentam encontrar as estruturas que o condicionam, que o consubstanciam, que o favorecem, que o geram na visibilidade social. Vão mais longe. Intentam decifrar-lhe o enigma, o mistério. Mas cansadas, desistem. Passam o facho à filosofia e à religião.
Estas já vêm desde as mais antigas eras rascunhando respostas. Vasculhar- lhes os caminhos ultrapassaria de longe a pretensão destas linhas. Entretanto, rápida tipologia pode localizar-nos nesse emaranhado de posições filosófico-religiosas sobre o mal.
A experiência humana defronta-se inelutavelmente com binômio fundamental na vida, expresso em abundantes vocábulos, mas cuja raiz última revela identidade profunda. De um lado, estão a vida, o prazer, a felicidade, o bem, o gozo, a satisfação, o gosto, a realização, a plenitude, a fruição, o desfrute, o proveito, o usufruto – o Aurélio poderia ampliar a sinonímia. De outro lado, situam-se a morte, a dor, o sofrimento, o mal, a insatisfação, a frustração, o desgosto, o fracasso, a perda, a falta, a carência etc.
Diante do mistério do mal que acompanha o ser humano a cada momento, levanta-se a pergunta sobre sua origem. Diante da impossibilidade de reduzi- lo ao bem, por causa de sua radical contraditoriedade, o espírito humano pensou a solução mais simples de fazê-lo recuar a um princípio último do mal que viveria ao lado do princípio do bem: o dualismo maniqueu. Essa posição penetrou sutilmente também mentes modernas, tecnocratas. Atua até hoje sob aquelas formas em que, em dado momento, uma pessoa, um grupo, um partido, uma proposta política se consideram toda a verdade, todo o bem e o adversário encarna, por sua vez, o mal. Na luta contra o comunismo, o presidente dos EUA, Ronald Reagan, encarnando a causa do país, se autodenominou defensor do “eixo do bem”, enquanto a URSS recebia a pecha de pertencer ao “eixo do mal”. O mesmo jogo o presidente George Bush repete em relação ao Iraque. O próprio neoliberalismo não esconde traços remanescentes desse dualismo, ao arrogar-se ser o fim da história, do último homem moderno (F. Fukuyama) e ao demonizar os últimos resquícios da tradição socialista.
No lado oposto, situa-se outra solução extrema: o monismo religioso ou filosófico. O mal não existe na sua realidade objetiva. É mera aparência. Tal posição lança suas raízes no genial pensador neoplatônico Plotino (204/205270 d.C.) e se expressa mais tarde e mais estruturadamente na doutrina monista panteísta de Espinosa (1632-1677), sem falar de correntes do pensamento hindu. Mas hoje volta à baila na vertente espiritualista da “Nova Era”. O mal não passa de deficiências de meu estado anímico que, uma vez controlado pelas inúmeras terapias à disposição, entra em estado alfa, se imerge nos fluídos positivos, bebe da energia primordial, espiritual envolvente. O mal resulta do estado de consciência, que não controlou positivamente as energias e potencialidades, da ignorância do potencial espiritual e da incapacidade de expansão da consciência. Pois esta consegue ultrapassar a pequenez do eu e alcançar comunhão profunda com todo o cosmos. Então o mal estaria superado.
Naturalmente faltam às duas posições extremas a dialeticidade de pensar no nível teórico e o enfrentamento realista no nível da prática. O mal resiste a fáceis soluções teóricas sem referência à prática e a compromissos práticos rápidos sem exigência teórica.
Nesse sentido, outros enveredaram simplesmente pelo caminho da resposta prática, sem perguntar-se por inteligibilidade maior. Nessa linha, situ- am-se o hinduísmo, o budismo, de um lado, e, de outro, o estoicismo. Os primeiros resolvem o mal e o sofrimento, dissolvendo-os na apatia teorética com a prática do esvaziamento do desejo, ao apontá-lo como a raiz do sofrimento, do mal. A felicidade final, o nirvana, será obtido no momento em que a individualidade, fonte dos desejos e do sofrimento, se perder dentro duma consciência universal.
Os estóicos viam na “apatia” a vitória sobre o sofrimento, sobre o mal. Resistiam aos impulsos cegos até à insensibilidade através de domínio da razão sobre o mundo exterior, sobre os afetos, em aspiração profunda à liberdade interior do homem “sábio” nas pegadas de Sócrates. Não se perguntaram pela “racionalidade” do mal, seu sentido, mas buscaram anulá-lo pela prática.
Tentar entender o mal e viver um mundo repleto dele implica, portanto, duplo desafio, teórico e prático. Antes de tudo, o mal goza da evidência do fato e esconde-se no mistério da inteligibilidade.
Em perspectiva sociológica, cabe erguer gigantesca balança e colocar- lhe nos braços, de um lado, os indícios de plausibilidade, de sentido e de racionalidade do mal, e, do outro, aqueles que revelam seu caráter absurdo. Conforme o critério de apreciação, pode-se entender que no final “há males que vêm para bem”, que “tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rom 8, 28), que “não há noite tão longa que não termine na outrora” (Ch Peguy). Além do mais, elencam-se razões que desdemonizam o mal: ele se torna ocasião para a prática do bem, tentação que forja as vontades heróicas e santas como aparece no caso prototípico de Abraão, disposto a matar o próprio filho. O mal do tsunami serviu de escola de humanidade e solidariedade. Os horrores perversos do nazismo permitiram surgir a esplendorosa e corajosa inocência de Anne Frank, a mística e Santa Edith Stein, o mártir Maximiliano Kolbe etc. Mas, às vezes, de maneira cínica, vê-se no mal da pobreza o bem da caridade assistencialista (posição tradicional); nos vícios privados, benefícios públicos (Adam Smith, E. Giannetti); nas doenças, fortuna para a indústria farmacêutica; na violência pela vida, a seleção purificadora do mais forte (Ch. Darwin) etc.
Contudo, essas e outras razões nunca desvendarão o “mistério” do mal, do sofrimento. Ele manterá sempre o sabor amargo da injustiça, da dor. Golpeará violentamente inocentes e poupará, em muitos casos, ou, pelo menos, aparentemente, vilões. E o próprio grito diante da injustiça é sofrido. No Brasil de hoje, quem ouviu o clamor inocente de 1.600 crianças diante de 2.000 soldados, vestidos de guerra, em nome do cumprimento da “justiça” para integrar as terras ocupadas pelos sem-terra em Getulina (São Paulo), sofreu a mesma dor de outra justiça. A justiça dói, sobretudo quando a desumanidade se faz vestir da legalidade justificada.
Esse caminho de apontar traços de bem advindos do mal, usado por apologética prática, tem amainado as inquietações de muitos corações. Mas deixa de lado a questão teórica e metafísica profunda.
Em busca de solução teórica, a aporia do mal encontra alguma luz na reflexão metafísica da condição de criatura, de ser finito.
A origem última do mal é o fato de a criatura ser finita e, portanto, de não ser Deus. Ao olhar o mal físico, Teilhard escrevia que a finitude na natureza é a raiz desse mal. Pensa-a, em perspectiva evolutiva, como “mal de crescimento”, “mal de desordem e fracasso”. Vale do mal físico a afirmação apodíctica de J. Monod: “O preço da vida é a morte”. O “bem da vida” com o surgir da primeira molécula viva implica necessariamente o mal da morte. É a própria condição de vida que pede a morte, para que a vida possa continuar existindo.
Basta lembrar aquela historieta dos habitantes de uma ilha que pediram aos deuses a imortalidade. Tendo-lhe sido concedida, entregaram-se, num primeiro momento, às maiores alegrias. Mas, pouco a pouco, a imortalidade tornou-lhes a vida insuportável: todos queriam ir para a tal ilha e já não havia lugar. Depois de séculos de vida não se agüentava mais ouvir as mesmas piadas, os mesmos discursos, os mesmos sermões, conviver com os mesmos es- posos/as etc. Terminam pedindo de novo a morte. Simone Beauvoir, no romance Todos os homens são mortais, mostra o terrível mal da morte como condição de possibilidade do maior bem humano, o amor.
E o mal moral? Também ele revela a finitude da liberdade humana que na sua imperfeição praticará o mal. “O mal tem sentido como mal precisamente porque é obra da liberdade” (P. Ricoeur). Numa palavra: a necessidade fáctica do mal se explica pelo ser do espírito finito, como seu fundamento de possibilidade (K. Hemmerle).
Aqui se cala o pensamento humano filosófico. As religiões tentam ir mais longe. E o cristianismo ousou a resposta mais avançada. Antes de tudo, assumiu o mundo existente com todas as realidades do mal, tanto físico quanto moral livre. E perguntou-se: Que Deus um tal mundo espera? Um que saiba, possa e queira ressuscitar e perdoar, porque ele próprio incorporou o mal na sua carne. Assim, o sentido do mal se ilumina a partir da própria realidade do Verbo Divino feito carne, que assumiu na sua humanidade o mal físico da dor e sofreu na sua vida os impactos terríveis do mal moral: a traição do amigo, o ódio do próprio povo, a injustiça das autoridades mais sagradas do seu tempo, a vingança dos adversários, a violência contra a inocência. E ao levar a experiência do mal até o extremo de uma morte violenta e injusta, revelou com sua vida ressuscitada para além da morte o último e definitivo sentido do mal: sua derrota em face do poder amoroso, perdoante e vivificador de Deus.
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Fonte: Horizonte: Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p. 1-180, dez. 2006.
Padre Libanio foi um pensador cuja obra tem um conteúdo inesgotável, sempre aberta aos leitores para novos aprendizados. Aprendi e aprendo muito com seus livros. Ele é uma referência intelectual máxima na minha vida. Esse gentil jesuíta sabia escrever de maneira quase poética sobre temas áridos da Teologia. Um pensador brilhante!
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